terça-feira, 23 de agosto de 2011

Ninguém resiste a uma estória de amor

Ninguém resiste a uma estória de amor, sobretudo bem contada. As pessoas vão se achegando, ouvindo e se houver chance, opinando, interagindo.

As pessoas querem amar, nem que seja através da fala alheia.

Por isto, conversamos nos bares, nas camas, nos portões, nas janelas, ao telefone, nos confessionários ou consultórios psicanalíticos. Por isto, as pessoas lêem romances, contos, poemas, crônicas, reportagens sobre dramas passionais, ligam novelas na televisão, lêem colunas sociais com mexericos e abrem essas revistas que sendo sobre “quem” são também sobre onde, quando e como as figuras do olimpo se amam e se desamam.

Estou dizendo essas coisas motivado por esse filme de Bigas Luna – “A Camareira do Titanic”. Ele pertence `a safra de diretores espanhóis como Buñel, Saura e Almodovar que brincando com a realidade, fazem surrealisticamente, o público viajar. Bigas Luna não inventou a estória. Tirou-a de um romance francês, cujo nome mal consegui ler na tela e nem apareceu nos resumos de jornal.

Em princípio narra-se a estória de um operário francês que ganha como prêmio ir ver a partida do “Titanic’ do porto de Southampton. Lá está ele, quando bate na porta de seu quarto no hotel uma bela jovem desconhecida, dizendo-se camareira do “Titanic”, pedindo para pernoitar ali ao lado dele. (Fiquem tranquilos que não vou lhes contar o filme, apenas explorar nele alguns aspectos). Pois bem. O fato é que o jovem Horty desperta no dia seguinte sem saber exatamente os limites do sonho e da realidade. Volta para casa com a foto de Marie, e ao ouvir rumores de que sua mulher dormiu com o patrão vai para o bar onde os amigos esperam que ele narre sua viagem. Ali se queda taciturno diante da foto, até que os amigos pedem que conte que mulher era aquela, que romance teve com ela. Ele diz a verdade: nada ocorreu, ela apenas dormiu no seu quarto e ele nem a tocou. Os amigos não aceitam. Provocam. Querem saber detalhes eróticos da noitada. Horty, sem se dar conta, começa a acrescentar dados imaginários à realidade.

Esta sessão no bar repete-se noutros dias. Os amigos, sempre em número maior, querendo mais saber e ele mais acrescentando. As rodadas das estórias eróticas do homem que amou a bela camareira do “Titanic” vai crescendo ao ponto de até sua própria esposa comparecer ao bar, já convertido num quase teatro. As sessões da narração do fato acabam estimulando a vida erótica das pessoas na comunidade, e as mulheres revelam que seus maridos começaram a ter melhor desempenho na cama. Enfim, cresce tanto a fama desse rapaz contando sua mirabolante estória, que um empresário mambembe vem ouvi-lo, e tão impressionado fica, que o contrata para viajar e, logo, encher platéias de teatro com sua crescente e cada vez mais comovedora narrativa amorosa.

Nessas alturas a esposa, antes ciumenta, já embarcou convenientemente na imaginação do marido, incorpora-se `a “troupe”, passando a fazer o papel de Marie. Seguem em representações funambulesca à la Felini. (Disse que não ia contar o filme, mas não há como não sintetizá-lo). Um dia o amante (e ator de seu próprio drama), enquanto descreve a sua imaginária dor real, vê na platéia a verdadeira Maria, que escapara do naufrágio do “Titanic”. Perplexo, ele interrompe o espetáculo, sai à procura dela e descobre que ela é uma prostituta e que ali está com seu gigolô para cobrar uma comissão na estória.

O filme, nessas alturas, dá um salto mortal e sai-se narrativamente muito bem. Realidade e ficção já se misturaram tanto, que a própria Maria acaba se envolvendo amorosamente nela, num desfecho sutil que arremata o que estávamos afirmando ao princípio: de que não apenas não sabemos muito bem os limites entre ficção e realidade, mas que preferimos gostosamente a ficção.

E aí basta olhar a cena em que estamos inseridos. Na tela, os personagens estão provocando e estimulando Horty para que supra a imaginação deles. Eles querem amar através das palavras do narrador. Querem preencher a carência com a abundância imaginativa alheia. Querem seduzir através da sedução alheia, querem gozar com a fala alheia.

Isto, lá na tela. Porque na platéia do cinema está ocorrendo a mesma coisa. Podia ouvir no escuro o suspiro, o coração pulsante, a imaginação latejante de toda a audiência, impelindo o personagem na tela a soltar o gozo imaginário que nos gratificaria a todos. Querem detalhes sobre o corpo dela, sobre o sexo, sobre quantas vezes fizeram amor.

-Doze vezes.

-Doze ?! (exclama um dos ouvintes estarrrecidamente feliz com aquela imaginária marca olímpica no leito). É que as pessoas carecem gozar, nem que seja através dos outros.

Como carecemos de uma estória alheia para esticar a nossa!

Se saber contar uma estória de amor é uma arte, saber viver uma estória de amor é igualmente arte maior e rara. Arte igualmente bela, dificílima e necessária. Verdade é que nem sempre essa estória é contada na mesa do bar. Possivelmente o mundo, dela não tomará conhecimento. Pouco importa. Os que a viveram, embora não a alardeiem se comprazem em vivê-la, em lembrá-la ou em ver na representação do amor alheio seu realizado amor.



A crônica foi apresentada no programa do dia 16 de agosto. A leitura foi realizada pelo próprio autor, o cronista e ex-presidente da Biblioteca Nacional Affonso Romano de Sant'Anna!

Para ouvir essa edição tão especial, acesse: http://www.radiouerj.com.br/EntreLinhasPP.php


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