terça-feira, 30 de agosto de 2011

A praia maravilhosa

Olá! Aí está a crônica que foi ao ar no programa de hoje, uma super obra de João do Rio!


Há um ano alguns poetas e alguns homens de sociedade ouviam Isadora Duncan – Musa do Erecthei que passa pelo mundo como o segredo revelado da beleza suprema. Isadora falava no deslumbramento da natureza. E de repente ela nos perguntou se conhecíamos a praia.

- O Leme?

- Não.

- Copacabana?

- A outra – outra praia...

As belezas do Brasil interessam pouco aos brasileiros. Nós positivamente não conhecíamos a outra praia – a praia que sobremaneira impressionara Isadora – a dançarina de gênio profundo. Ela, porém, fez questão de mostrar a sua praia. Servia-lhe um chauffeur – titular arruinado que se entrega ao automobilismo nas garagens por falta de dinheiro. O chauffeur sabia onde ficava essa praia. Era preciso ver logo! Assim despencamos da terrasse do moderno Hotel, onde Messager ficou só fumando um charuto. Era mais de meia-noite na noite de inverno e de luar.

(...)*

- Mas é o fim do mundo.

- Não, é o Arpoador, o Ipanema.

Realmente. A rua dava numa praia sem a iluminação elétrica, sem outra iluminação mesmo que fosse a do luar. A do luar era tênue, tão derramada estava pelas neblinas. De modo que, com o galope espumarento das ondas, em frente, e a convulsão de titans petrificados dos montes ao fundo e aquela atmosfera de névoa – pela primeira vez nós vimos uma daquelas paisagens de Shelley em que a natureza parece fundar-se no inebriante espiritual da sua própria luxúria.

- Como é belo! Como é belo! Dizia Isadora em êxtase.

- Estamos em frente ao Country-Club! Que pena não podemos cear...

E há um ano eu guardava as lembranças desse passeio como qualquer coisa de irreal e de infinitamente belo – como se naquela noite tivesse vivido o Prometheu desse mesmo Shelley, sagrado poeta.

Há dias, numa sessão de cinematografia – um jornal da semana que com habilidade inteligente executa há tempos o jovem cinematografista Alberto Botelho – tornei a ver Ipanema, não na bruma de um luar de inverno, mas ao sol, com detalhes de beleza maravilhosos.

- É de fato muito bonito!

- V. não conhece ainda Ipanema.

- Conheço sob o prisma Shelley e sob o prisma Isadora.

Os poetas revelam, os homens realizam. Quer conhecer Ipanema sob o prisma Raul Kennedy de Lemos e Companhia Construtora? É impossível que não impressione essa realização para a qual concorrem todas as pessoas de verdadeiro gosto – realizando assim um dos mais belos trechos do Rio – a Praia Maravilhosa.

O meu desejo era grande de conhecer Ipanema – de verdade, sem Shelley, sem Isadora, sem cinematógrafo. Fazia uma tarde linda. O primeiro automóvel que tomamos levou-nos lá em menos de vinte minutos. A surpresa primeira e agradável foi ver a rua há um ano intransitável – asfaltada. O meu guia explicou:

- Ainda há um pequeno trecho – cerca de 400 metros – por calçar. A prefeitura de certo não deixará de executar este trabalho. Com o trabalho de valorização empreendido por Kennedy de Lemos, os terrenos que eram vendidos a três e a quatro contos o lote, estão sendo vendidos já a 8, 10 e mais. Só em impostos de transmissão a Prefeitura ganha com isso. Veja depois o aumento do imposto predial.

Mas nos dávamos na praia com a enorme Avenida Meridional macadamizada.

- Quem macadamizou isto?

- O próprio Raul Lemos. Ele tem um gênio empreendedor. É moço. Ficou-lhe em mais de cem contos o trabalho. E ficou apenas por tal preço, porque a crise de trabalho fez com que muitos operários lhe fossem oferecer a colaboração com salários reduzidos. V. pode imaginar o futuro deste trecho do Rio. Lembra-se do que era o Leme há quinze anos?

- Devem lembrar-se as pessoas mais ou menos velhas.

- Pois era o deserto. Dentro de cinco anos, a Praia Maravilhosa será o bairro mais elegante e mais belo da cidade que a Jane Catulle Mendes denominou La ville merveilleuse. Santos Dummont ficou tão impressionado que vai mandar construir aqui uma vila.

Eu não via mais a paisagem lunar, de um ano atrás. Via uma cidade monumental surgindo ao sol da tarde. Eram ruas a alinhar; eram turmas de trabalhadores calçando algumas dessas ruas; eram caminhões – automóveis cruzando-se carregados de material; era o movimento dos bondes, que só aparecem quando há no local vida própria; era principalmente nas ruas que percorríamos nas casas novas em folha, os estabelecimentos comerciais, indicadores de que o crescimento do bairro se fazia vertiginoso.

O que se executou este ano! – tornava o meu informante. O prolongamento da linha de bonde de Ipanema numa extensão de 1600 metros; a construção de um ramal da linha de transways para o Leblon numa extensão de 3000 metros; a construção de uma parte da Avenida Meridional com 1600 metros e extensão o marcaram betuminoso – o melhor calçamento do gênero, e toda essa obra em formação. Até o fim do ano há mais dois mil metros de ruas calçadas.

- Caramba!

- E com planos maiores tais como a ponte que deve ligar o Leblon à Gávea, (...)* – Raul Kennedy de Lemos formou a Companhia Construtora Ipanema. Dispondo de material próximo a companhia constrói muito mais em conta e a prazo longo em prestações que equivalem aos aluguéis que eternamente pagam aos proprietários aqueles que não podem ter de pancada a quantia para ter a sua casa.

- E o prazo?

- Dez anos, com a possibilidade de menos tempo porque não são aceitas quando possíveis as prestações para amortização mais rápida.

Tinha o nosso automóvel enveredado por uma rua – que ia dar a uma colossal serraria.

- Da empresa?

- A serraria tem várias sessões. Ocupará uns dois mil operários. É bem uma grande fábrica de construções de casas. Casas de luxo. São todas de cimento armado e no seu preparo empregam-se madeiras brasileiras, que até hoje só serviam para móveis de luxo – jacarandá, óleo vermelho, pau marfim, pau cetim. Venha ver uma casa que construímos por 40 contos, com o pagamento em prestações.

Saltamos adiante. Havia quatro vilas de fachada elegante. Entramos numa delas ainda vazia. Quem conhece o desconforto das habitações de aluguel no Rio, com paredes empinadas, portas de pinho pintadas, escadas que rangem, banheiros incríveis e forrações ignóbeis – tem pela comparação verdadeiro pasmo. A casa em que estávamos com os tetos, as janelas e as portas de óleo vermelho, soalhos em mosaico, sala de banho vasta, e a disposição confortável dos interiores ingleses – era uma casa de luxo.

- Mas com esta crise, haverá quem se abalance?...

- Os terrenos sobem de preço de semana a semana. Já não há um só de frente para o mar. E as encomendas de construções aumentam na proporção. Pode imaginar dentro de três a quatro anos o que será a Praia Maravilhosa – sendo dentro do mais belo cenário do Rio – a 45 minutos de bonde da Avenida Central – o bairro onde todas as casas serão grandes ou pequenos palacetes feitos com elegância e arte...

O meu guia fez depois o automóvel parar no Country-Club – para o aperitivo da tarde. Subindo as escadas dessa sociedade tão refinadamente distinta, eu quis concentrar na retina esse outro momento da Praia Maravilhosa – o momento em que uma cidade imprevista e bela desabrocha da beleza irreal e profunda do trecho mais admirável do Rio. E vendo aquele trabalho febril e os palácios brancos sob o carmesim do ocaso, entre o verde azul do mar, lembrei um outro esforço à beira do deserto, feito há anos por capitalistas belgas – a cidade em que todas as casas são belas e de luxo – Helliopolis construído de repente a uma hora do Cairo...

O Rio entendeu-se pelas praias. Contornou o Pão de Açúcar e continuou no Leme, em Copacabana. O novo bairro é o derradeiro ponto dessa reticência de casarias. Mas é o ponto final mais formoso de uma cidade – uma nova cidade toda bela num pedaço de terra tão linda, que, sem exageros, é impossível contemplar sem lhe dar o verdadeiro nome: - a Praia Maravilhosa.

*trecho com texto ilegível, por falha no microfilme do jornal "O Paiz", de 23 de maio de 1917. A crônica foi copiada dos arquivos de periódicos na Biblioteca Nacional.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Ninguém resiste a uma estória de amor

Ninguém resiste a uma estória de amor, sobretudo bem contada. As pessoas vão se achegando, ouvindo e se houver chance, opinando, interagindo.

As pessoas querem amar, nem que seja através da fala alheia.

Por isto, conversamos nos bares, nas camas, nos portões, nas janelas, ao telefone, nos confessionários ou consultórios psicanalíticos. Por isto, as pessoas lêem romances, contos, poemas, crônicas, reportagens sobre dramas passionais, ligam novelas na televisão, lêem colunas sociais com mexericos e abrem essas revistas que sendo sobre “quem” são também sobre onde, quando e como as figuras do olimpo se amam e se desamam.

Estou dizendo essas coisas motivado por esse filme de Bigas Luna – “A Camareira do Titanic”. Ele pertence `a safra de diretores espanhóis como Buñel, Saura e Almodovar que brincando com a realidade, fazem surrealisticamente, o público viajar. Bigas Luna não inventou a estória. Tirou-a de um romance francês, cujo nome mal consegui ler na tela e nem apareceu nos resumos de jornal.

Em princípio narra-se a estória de um operário francês que ganha como prêmio ir ver a partida do “Titanic’ do porto de Southampton. Lá está ele, quando bate na porta de seu quarto no hotel uma bela jovem desconhecida, dizendo-se camareira do “Titanic”, pedindo para pernoitar ali ao lado dele. (Fiquem tranquilos que não vou lhes contar o filme, apenas explorar nele alguns aspectos). Pois bem. O fato é que o jovem Horty desperta no dia seguinte sem saber exatamente os limites do sonho e da realidade. Volta para casa com a foto de Marie, e ao ouvir rumores de que sua mulher dormiu com o patrão vai para o bar onde os amigos esperam que ele narre sua viagem. Ali se queda taciturno diante da foto, até que os amigos pedem que conte que mulher era aquela, que romance teve com ela. Ele diz a verdade: nada ocorreu, ela apenas dormiu no seu quarto e ele nem a tocou. Os amigos não aceitam. Provocam. Querem saber detalhes eróticos da noitada. Horty, sem se dar conta, começa a acrescentar dados imaginários à realidade.

Esta sessão no bar repete-se noutros dias. Os amigos, sempre em número maior, querendo mais saber e ele mais acrescentando. As rodadas das estórias eróticas do homem que amou a bela camareira do “Titanic” vai crescendo ao ponto de até sua própria esposa comparecer ao bar, já convertido num quase teatro. As sessões da narração do fato acabam estimulando a vida erótica das pessoas na comunidade, e as mulheres revelam que seus maridos começaram a ter melhor desempenho na cama. Enfim, cresce tanto a fama desse rapaz contando sua mirabolante estória, que um empresário mambembe vem ouvi-lo, e tão impressionado fica, que o contrata para viajar e, logo, encher platéias de teatro com sua crescente e cada vez mais comovedora narrativa amorosa.

Nessas alturas a esposa, antes ciumenta, já embarcou convenientemente na imaginação do marido, incorpora-se `a “troupe”, passando a fazer o papel de Marie. Seguem em representações funambulesca à la Felini. (Disse que não ia contar o filme, mas não há como não sintetizá-lo). Um dia o amante (e ator de seu próprio drama), enquanto descreve a sua imaginária dor real, vê na platéia a verdadeira Maria, que escapara do naufrágio do “Titanic”. Perplexo, ele interrompe o espetáculo, sai à procura dela e descobre que ela é uma prostituta e que ali está com seu gigolô para cobrar uma comissão na estória.

O filme, nessas alturas, dá um salto mortal e sai-se narrativamente muito bem. Realidade e ficção já se misturaram tanto, que a própria Maria acaba se envolvendo amorosamente nela, num desfecho sutil que arremata o que estávamos afirmando ao princípio: de que não apenas não sabemos muito bem os limites entre ficção e realidade, mas que preferimos gostosamente a ficção.

E aí basta olhar a cena em que estamos inseridos. Na tela, os personagens estão provocando e estimulando Horty para que supra a imaginação deles. Eles querem amar através das palavras do narrador. Querem preencher a carência com a abundância imaginativa alheia. Querem seduzir através da sedução alheia, querem gozar com a fala alheia.

Isto, lá na tela. Porque na platéia do cinema está ocorrendo a mesma coisa. Podia ouvir no escuro o suspiro, o coração pulsante, a imaginação latejante de toda a audiência, impelindo o personagem na tela a soltar o gozo imaginário que nos gratificaria a todos. Querem detalhes sobre o corpo dela, sobre o sexo, sobre quantas vezes fizeram amor.

-Doze vezes.

-Doze ?! (exclama um dos ouvintes estarrrecidamente feliz com aquela imaginária marca olímpica no leito). É que as pessoas carecem gozar, nem que seja através dos outros.

Como carecemos de uma estória alheia para esticar a nossa!

Se saber contar uma estória de amor é uma arte, saber viver uma estória de amor é igualmente arte maior e rara. Arte igualmente bela, dificílima e necessária. Verdade é que nem sempre essa estória é contada na mesa do bar. Possivelmente o mundo, dela não tomará conhecimento. Pouco importa. Os que a viveram, embora não a alardeiem se comprazem em vivê-la, em lembrá-la ou em ver na representação do amor alheio seu realizado amor.



A crônica foi apresentada no programa do dia 16 de agosto. A leitura foi realizada pelo próprio autor, o cronista e ex-presidente da Biblioteca Nacional Affonso Romano de Sant'Anna!

Para ouvir essa edição tão especial, acesse: http://www.radiouerj.com.br/EntreLinhasPP.php


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Retomando atividades

Olá seguidores do Entrelinhas!
Depois de um tempo, cá estamos de volta pra atualizar o Blog do programa!
Toda semana teremos novas crônicas postadas, e também extras das gravações das entrevistas, fotos, etc.
No tempo em que o Blog esteve sem novas, o programa contou com participações muito especiais, como do escritor, cronista e crítico literário José Castello, que escreve para o jornal O Globo. Também entrevistamos o escritor, poeta e cronista Bartolomeu Campos de Queirós, autor do Manifesto Por Um Brasil Literário.

Para que você não perca nada, durante as semanas serão postadas as crônicas que já foram apresentadas nesse último período.

E quanto as próximas edições, adianto que serão surpreendentes! Com a participação do escritor, poeta e cronista Affonso Romano de Sant'Anna, e ainda crônica de João do Rio, retirada diretamente do microfilme do jornal O Paíz, na Biblioteca Nacional!

Até o próximo post queridos!
Continue ligado na Rádio UERJ!

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Trecho da série de crônicas "Bons Dias!"

Crônica do programa Nº 7:

Trecho de "Bons Dias!", de Machado de Assis, publicado no jornal Gazeta de Notícias, em 28 de Outubro de 1888. (5 meses após a Abolição da Escravatura do Brasil e 1 ano antes da Proclamação da República)


Viva a galinha com a sua pevide. Vamos nós vivendo com a nossa policia. Não será superior, mas também não é inferior à policia de Londres, que ainda não pôde descobrir o assassino e estripador de mulheres. E dizem que é a primeira do universo. O assassino, para maior ludibrio da autoridade, mandou-lhe cartões pelo correio.

Eu, desde algum tempo, ando com vontade de propor que aposentemos a Inglaterra... Digo, aposentá-la nos nossos discursos e citações. Neste particular, tivemos a principio a mania francesa e revolucionária; folheiem os Anais da Constituinte, e verão. Mais tarde ficou a França constitucional e a Inglaterra: Até 1879, ouvi proclamar cento e dezenove vezes este aforismo inglês: "A Câmara dos Comuns pode tudo, menos fazer de um homem uma mulher, ou vice-versa.

"Justamente o que a nossa Câmara faz, quando quer, dizia eu comigo.

Pois bem, aposentemos agora a Inglaterra; adotemos a Itália. Basta advertir que, há pouco tempo, lá estiveram (ou ainda estão) vinte e tantos deputados metidos em enxovia, só por serem irlandeses. Nenhum dos nossos deputados é irlandês; mas se algum vier a sê-lO, juro que será mais bem tratado. E, comparando tanta polícia para pegar deputados com tão pouca para descobrir um estripador de mulheres, folgazão e científico, a conclusão não pode ser senão a do começo: - Viva a galinha com a sua pevide...

Aqui interrompe-me o leitor: - Já vejo que é nativista! E eu respondo que não sei bem o que sou O mesmo me disseram anteontem, falando-se do projeto do meu ilustre amigo senador Taunay. Como eu dissesse que não aceitava o projeto, integralmente, alguém tentou persuadir-me que eu era nativista. Ao que respondi:

- Não sei bem o que sou. Se nativista é algum bicho feio, paciência; mas, se quer dizer exclusivista, não é comigo.

Não se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se de coração, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas.

Entretanto, a gente pode admirá-lo e estimá-lo, sem achar que este último projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que lá está. é a grande naturalização. Não sei se ando certo, atribuindo àquela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos públicos. Pois, senhor. acho acertado. Com efeito, se o homem é brasileiro e apto, por que não será para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos?

Mas o projeto traz outras cousas que bolem comigo, e até uma que bole com o próprio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, não havendo meio legal de impedir que eles entrem no império aqui temos nós os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constituídos em milhares de cidadãos brasileiros, no fim de dous anos, ou até de um. Excluí-los da lei é impossível. Ai fica uma conseqüência desagradável para o meu ilustre amigo.

Outra conseqüência. O digno Senador Taunay deseja a imigração em larga escala. Prefeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dous anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro à força, há de refletir um pouco e pode não vir. No momento de deixar a pátria, ninguém pensa em trocá-la por outra; todos saem para arranjar a vida.

Em suma,-e é o principal defeito que lhe acho,-este projeto afirma de um modo estupendo a onipotência do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre. é bom e necessário; mas mandá-lo pegar por dous sujeitos, metê-lo a força dentro de casa para almoçar, não podendo ele recusar a fineza senão jurando que tem outro almoço à sua espera, não é coisa que se pareça com liberdade individual.



Crônica "Chocalho na Onça"

Crônica do programa Nº 6:

"Chocalho na Onça", escrita por Câmara Cascudo, há mais de 70 anos e publicada no livro “Ontem”, lançado em 1972, pela Editora Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O velho seridoense, José Gomes da Trindade do Templo de Maria (1914-1898), “seridoano”, como a escreve a poetisa Donatilla Dantas, foi o maior caçador de onças de toda a região do Seridó, Paraíba e Rio Grande do Norte. Contam que, de uma feita, encontrando uma suçuarana caída no mundéu, deu-se a pachorra de enchocalhar a fera, soltando a depois. O felino era a temível predadora de currais e chiqueiros, afoita, elástica, magnética. Morreu de fome. Com aquele chocalhar ao pescoço, afugentava todos os animais, inutilizando os cautelosos deslizes na denúncia do cincerro, avisador da aproximação feroz e faminta. Essa “Onça Chocalheira” daria uma imagem a Ruy Barbosa, com as conseqüências funcionais surpreendentes na Sociologia humana.


Crônica "Augúrio de Automóvel"

Crônica do programa Nº 5:

"Augúrio de Automóvel", de Câmara Cascudo, publicado no livro "Ontem", lançado em 1972.

Para as “meninas” estudantes, os números dos automóveis permitem previsões augurais. Lê-se na placa cada algarismo, soma-se, tirando os nove - fora. 2377 valem 19. Nove - fora, um! Corresponde a Amor, Amizade. Diz a “Base”: 1 – Amor, Amizade. 2 – Saudade. 3 – Tristeza. 4 – Declaração de amor. 5 – Saúde. 6 – Encontro com quem deseja. 7 – Surpresa. 8 – Felicidade. 9 – Alegria. Quando ocorre o 3, faz-se uma figa. Informação de uma aluna de Direito, que o aprendera com as colegas no Colégio da Conceição, em Natal. Já o conheciam em 1940. Veio do Rio de Janeiro.

Crônica "O Muambeiro"

Crônica do programa Nº 4:

"O Muambeiro", de Lima Barreto, publicado na Revista Careta, em 7 de Setembro de 1915.

Quando saio de casa e vou à esquina da Estrada Real de Santa Cruz, esperar o bonde, vejo bem a miséria que vai por este Rio de Janeiro.

Moro há mais de 10 anos naquelas paragens e não sei por que os humildes e os pobres têm-me na conta de pessoa importante, poderosa, capaz de arranjar empregos e solver dificuldades.

Pergunta-me um se deve assentar praça na Brigada, pois há oito meses não trabalha no seu ofício de carpinteiro; pergunta-me outro se deve votar no Sr. Fulano; e, às vezes mesmo, consultam-me sobre casos embaraçosos. Houve um matador de porcos que pediu a minha opinião sobre este caso curioso: se devia aceitar dez mil-réis para matar o cevado do capitão M., o que lhe dava trabalho por três dias, com a salga e o fabrico de lingüiças; ou se devia comprar o canastra por cinqüenta mil-réis e revendê-lo aos quilos pela redondeza. Eu, que nunca fui versado em coisas de matadouro, olhei os Órgãos ainda fumarentos nestas manhãs de cerração e pensei que o meu destino era ser vigário de uma pequena freguesia.

Ultimamente, na esquina, veio ao meu encontro um homem com quem conversei alguns minutos. Ele me contou a sua desdita com todo o vagar de popular.

Era operário não sei de que ofício; ficara sem emprego, mas, como tinha um pequeno sítio lá para as bandas do Timbó e algumas economias, não se atrapalhou em começo. As economias foram-se, mas ficou-lhe o sítio, com as suas laranjeiras, com as suas tangerineiras, as suas bananeiras, árvore de futuro com a qual o Sr. Cincinato Braga, depois de salvar o café, vai salvar o Brasil. Notem bem: depois.

Este ano foi particularmente abundante em laranjas e o nosso homem teve a feliz idéia de vendê-las. Vendo, porém, que os compradores na porta não lhe davam o preço devido, tratou de valorizar o produto, mas sem empréstimo a 30%.

Comprou um cesto, encheu-o de laranjas e saiu a gritar:

— Vai laranja boa! Uma a vintém!

Foi feliz e pelo caminho apurou uns dois mil-réis. Quando, porém, chegou a Todos os Santos, saiu-lhe ao encontro a lei, na pessoa de um guarda municipal:

— Que dê a licença?

— Que licença?

— Já sei, intimou o guarda. Você é "moambeiro". Vamos para a Agência.

Tomaram-lhe o cesto, as laranjas, o dinheiro e, a muito custo, deixaram-no com a roupa do corpo.

Eis aí como se protege a pomicultura.