segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Trecho da série de crônicas "Bons Dias!"

Crônica do programa Nº 7:

Trecho de "Bons Dias!", de Machado de Assis, publicado no jornal Gazeta de Notícias, em 28 de Outubro de 1888. (5 meses após a Abolição da Escravatura do Brasil e 1 ano antes da Proclamação da República)


Viva a galinha com a sua pevide. Vamos nós vivendo com a nossa policia. Não será superior, mas também não é inferior à policia de Londres, que ainda não pôde descobrir o assassino e estripador de mulheres. E dizem que é a primeira do universo. O assassino, para maior ludibrio da autoridade, mandou-lhe cartões pelo correio.

Eu, desde algum tempo, ando com vontade de propor que aposentemos a Inglaterra... Digo, aposentá-la nos nossos discursos e citações. Neste particular, tivemos a principio a mania francesa e revolucionária; folheiem os Anais da Constituinte, e verão. Mais tarde ficou a França constitucional e a Inglaterra: Até 1879, ouvi proclamar cento e dezenove vezes este aforismo inglês: "A Câmara dos Comuns pode tudo, menos fazer de um homem uma mulher, ou vice-versa.

"Justamente o que a nossa Câmara faz, quando quer, dizia eu comigo.

Pois bem, aposentemos agora a Inglaterra; adotemos a Itália. Basta advertir que, há pouco tempo, lá estiveram (ou ainda estão) vinte e tantos deputados metidos em enxovia, só por serem irlandeses. Nenhum dos nossos deputados é irlandês; mas se algum vier a sê-lO, juro que será mais bem tratado. E, comparando tanta polícia para pegar deputados com tão pouca para descobrir um estripador de mulheres, folgazão e científico, a conclusão não pode ser senão a do começo: - Viva a galinha com a sua pevide...

Aqui interrompe-me o leitor: - Já vejo que é nativista! E eu respondo que não sei bem o que sou O mesmo me disseram anteontem, falando-se do projeto do meu ilustre amigo senador Taunay. Como eu dissesse que não aceitava o projeto, integralmente, alguém tentou persuadir-me que eu era nativista. Ao que respondi:

- Não sei bem o que sou. Se nativista é algum bicho feio, paciência; mas, se quer dizer exclusivista, não é comigo.

Não se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se de coração, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas.

Entretanto, a gente pode admirá-lo e estimá-lo, sem achar que este último projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que lá está. é a grande naturalização. Não sei se ando certo, atribuindo àquela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos públicos. Pois, senhor. acho acertado. Com efeito, se o homem é brasileiro e apto, por que não será para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos?

Mas o projeto traz outras cousas que bolem comigo, e até uma que bole com o próprio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, não havendo meio legal de impedir que eles entrem no império aqui temos nós os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constituídos em milhares de cidadãos brasileiros, no fim de dous anos, ou até de um. Excluí-los da lei é impossível. Ai fica uma conseqüência desagradável para o meu ilustre amigo.

Outra conseqüência. O digno Senador Taunay deseja a imigração em larga escala. Prefeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dous anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro à força, há de refletir um pouco e pode não vir. No momento de deixar a pátria, ninguém pensa em trocá-la por outra; todos saem para arranjar a vida.

Em suma,-e é o principal defeito que lhe acho,-este projeto afirma de um modo estupendo a onipotência do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre. é bom e necessário; mas mandá-lo pegar por dous sujeitos, metê-lo a força dentro de casa para almoçar, não podendo ele recusar a fineza senão jurando que tem outro almoço à sua espera, não é coisa que se pareça com liberdade individual.



Crônica "Chocalho na Onça"

Crônica do programa Nº 6:

"Chocalho na Onça", escrita por Câmara Cascudo, há mais de 70 anos e publicada no livro “Ontem”, lançado em 1972, pela Editora Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O velho seridoense, José Gomes da Trindade do Templo de Maria (1914-1898), “seridoano”, como a escreve a poetisa Donatilla Dantas, foi o maior caçador de onças de toda a região do Seridó, Paraíba e Rio Grande do Norte. Contam que, de uma feita, encontrando uma suçuarana caída no mundéu, deu-se a pachorra de enchocalhar a fera, soltando a depois. O felino era a temível predadora de currais e chiqueiros, afoita, elástica, magnética. Morreu de fome. Com aquele chocalhar ao pescoço, afugentava todos os animais, inutilizando os cautelosos deslizes na denúncia do cincerro, avisador da aproximação feroz e faminta. Essa “Onça Chocalheira” daria uma imagem a Ruy Barbosa, com as conseqüências funcionais surpreendentes na Sociologia humana.


Crônica "Augúrio de Automóvel"

Crônica do programa Nº 5:

"Augúrio de Automóvel", de Câmara Cascudo, publicado no livro "Ontem", lançado em 1972.

Para as “meninas” estudantes, os números dos automóveis permitem previsões augurais. Lê-se na placa cada algarismo, soma-se, tirando os nove - fora. 2377 valem 19. Nove - fora, um! Corresponde a Amor, Amizade. Diz a “Base”: 1 – Amor, Amizade. 2 – Saudade. 3 – Tristeza. 4 – Declaração de amor. 5 – Saúde. 6 – Encontro com quem deseja. 7 – Surpresa. 8 – Felicidade. 9 – Alegria. Quando ocorre o 3, faz-se uma figa. Informação de uma aluna de Direito, que o aprendera com as colegas no Colégio da Conceição, em Natal. Já o conheciam em 1940. Veio do Rio de Janeiro.

Crônica "O Muambeiro"

Crônica do programa Nº 4:

"O Muambeiro", de Lima Barreto, publicado na Revista Careta, em 7 de Setembro de 1915.

Quando saio de casa e vou à esquina da Estrada Real de Santa Cruz, esperar o bonde, vejo bem a miséria que vai por este Rio de Janeiro.

Moro há mais de 10 anos naquelas paragens e não sei por que os humildes e os pobres têm-me na conta de pessoa importante, poderosa, capaz de arranjar empregos e solver dificuldades.

Pergunta-me um se deve assentar praça na Brigada, pois há oito meses não trabalha no seu ofício de carpinteiro; pergunta-me outro se deve votar no Sr. Fulano; e, às vezes mesmo, consultam-me sobre casos embaraçosos. Houve um matador de porcos que pediu a minha opinião sobre este caso curioso: se devia aceitar dez mil-réis para matar o cevado do capitão M., o que lhe dava trabalho por três dias, com a salga e o fabrico de lingüiças; ou se devia comprar o canastra por cinqüenta mil-réis e revendê-lo aos quilos pela redondeza. Eu, que nunca fui versado em coisas de matadouro, olhei os Órgãos ainda fumarentos nestas manhãs de cerração e pensei que o meu destino era ser vigário de uma pequena freguesia.

Ultimamente, na esquina, veio ao meu encontro um homem com quem conversei alguns minutos. Ele me contou a sua desdita com todo o vagar de popular.

Era operário não sei de que ofício; ficara sem emprego, mas, como tinha um pequeno sítio lá para as bandas do Timbó e algumas economias, não se atrapalhou em começo. As economias foram-se, mas ficou-lhe o sítio, com as suas laranjeiras, com as suas tangerineiras, as suas bananeiras, árvore de futuro com a qual o Sr. Cincinato Braga, depois de salvar o café, vai salvar o Brasil. Notem bem: depois.

Este ano foi particularmente abundante em laranjas e o nosso homem teve a feliz idéia de vendê-las. Vendo, porém, que os compradores na porta não lhe davam o preço devido, tratou de valorizar o produto, mas sem empréstimo a 30%.

Comprou um cesto, encheu-o de laranjas e saiu a gritar:

— Vai laranja boa! Uma a vintém!

Foi feliz e pelo caminho apurou uns dois mil-réis. Quando, porém, chegou a Todos os Santos, saiu-lhe ao encontro a lei, na pessoa de um guarda municipal:

— Que dê a licença?

— Que licença?

— Já sei, intimou o guarda. Você é "moambeiro". Vamos para a Agência.

Tomaram-lhe o cesto, as laranjas, o dinheiro e, a muito custo, deixaram-no com a roupa do corpo.

Eis aí como se protege a pomicultura.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Crônica "País Rico"

Crônica do programa Nº 3:

"País Rico", de Lima Barreto, publicado na Revista Careta, em 8 de Maio de 1920.

Não há dúvida alguma que o Brasil é um país muito rico. Nós que nele vivemos; não nos apercebemos bem disso, e até, ao contrário, o supomos muito pobre, pois a toda hora e a todo instante, estamos vendo o governo lamentar-se que não faz isto ou não faz aquilo por falta de verba.

Nas ruas da cidade, nas mais centrais até, andam pequenos vadios, a cursar a perigosa universidade da calariça das sarjetas, aos quais o governo não dá destino, o os mete num asilo, num colégio profissional qualquer, porque não tem verba, não tem dinheiro. É o Brasil rico...

Surgem epidemias pasmosas, a matar e a enfermar milhares de pessoas, que vêm mostrar a falta de hospitais na cidade, a má localização dos existentes. Pede-se à construção de outros bem situados; e o governo responde que não pode fazer porque não tem verba, não tem dinheiro. E o Brasil é um país rico.

Anualmente cerca de duas mil mocinhas procuram uma escola anormal ou anormalizada, para aprender disciplinas úteis. Todos observam o caso e perguntam:

- Se há tantas moças que desejam estudar, por que o governo não aumenta o número de escolas a elas destinadas?

O governo responde:

- Não aumento porque não tenho verba, não tenho dinheiro.

E o Brasil é um país rico, muito rico...

As notícias que chegam das nossas guarnições fronteiriças, são desoladoras. Não há quartéis; os regimentos de cavalaria não têm cavalos, etc., etc.

- Mas que faz o governo, raciocina Brás Bocó, que não constrói quartéis e não compra cavalhadas?

O doutor Xisto Beldroegas, funcionário respeitável do governo acode logo:

- Não há verba; o governo não tem dinheiro.

- E o Brasil é um país rico; e tão rico é ele, que apesar de não cuidar dessas coisas que vim enumerando, vai dar trezentos contos para alguns latagões irem ao estrangeiro divertir-se com os jogos de bola como se fossem crianças de calças curtas, a brincar nos recreios dos colégios.

O Brasil é um país rico...

Crônica "As Enchentes"

Crônica do nosso segundo programa:

"As Enchentes", de Lima Barreto, publicada no jornal Correio da Noite, em 19 de Janeiro de 1915.

As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam, no nosso Rio de Janeiro, inundações desastrosas.

Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis.

De há muito que a nossa engenharia municipal se devia ter compenetrado do dever de evitar tais acidentes urbanos.

Uma arte tão ousada e quase tão perfeita, como é a engenharia, não deve julgar irresolvível tão simples problema.

O Rio de Janeiro, da avenida, dos squares, dos freios elétricos, não pode estar à mercê de chuvaradas, mais ou menos violentas, para viver a sua vida integral.

Como está acontecendo atualmente, ele é função da chuva. Uma vergonha!

Não sei nada de engenharia, mas, pelo que me dizem os entendidos, o problema não é tão difícil de resolver como parece fazerem constar os engenheiros municipais, procrastinando a solução da questão.

O Prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio.

Cidade cercada de montanhas e entre montanhas, que recebe violentamente grandes precipitações atmosféricas, o seu principal defeito a vencer era esse acidente das inundações.

Infelizmente, porém, nos preocupamos muito com os aspectos externos, com as fachadas, e não com o que há de essencial nos problemas da nossa vida urbana, econômica, financeira e social.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Crônica "O rico mendigo"

Crônica do nosso primeiro programa:

“O Rico Mendigo”, publicado na Revista Careta, em 24/07/1915

Não sei como vos conte a coisa. A história passou-se em sonho, creio eu.
Sonhei uma noite destas que tinha encontrado na rua um senhor cheio de brilhantes, cheio de roupas, bengala de castão de ouro, botinas das mais finas, que me estendeu a mão:
- Uma esmola, pelo amor de Deus!
Admirei-me de tal fato, espantei-me e lhe dei a esmola. Ia seguir o meu caminho, quando o mendigo bem-vestido me chamou e disse-me:
- Venha cá, por favor.
Voltei e ele me convidou a ir a uma confeitaria. Houve da minha parte novo espanto. Como é que o homem me pedia uma esmola, a mim de recursos reduzidos, cheio de encrencas na vida, e, minutos após, convidava-me para beber em uma confeitaria. Fui ao bar mais próximo e ele, sem mais delongas, explicou-se:
- Deve o senhor admirar-se de que eu, bem-vestido, com jóias, com bengala de luxo, com um Patek no bolso, lhe tivesse pedido uma esmola. Eu lhe explico.
Fez uma pausa, sorvemos alguns goles de cerveja e continuou:
- Sou rico e digo isto a todo mundo. Moro em uma grande casa, tenho lindos e caros móveis, tenho alfaias, tenho carros, tenho numerosa criadagem, tenho um banheiro que é uma verdadeira terma romana e custeio tudo isso sem o menor esforço, mas peço esmolas.
- Por que?
- Porque quero ganhar mais e mais. Peço até aos meus irmãos mais pobres, mesmo àqueles que vivem com mais dificuldades. Quero sempre ter mais, ganhar mais, para proclamar a todos a minha riqueza; e as esmolas me servem para as despesas miúdas. Às vezes até, elas me proporcionam especulações felizes.
- Mas quem é o senhor?
- Não sabe? Eu sou o café.